O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no início de 2021 e julgou inconstitucional a cobrança do Diferencial de Alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (Difal/ICMS), introduzida pela Emenda Constitucional (EC) 87/2015, por ter ocorrido sem a existência de lei complementar para disciplinar a cobrança. Ao final do julgamento, os ministros decidiram que a decisão produzirá efeitos apenas a partir de 2022, dando oportunidade ao Congresso Nacional para a criação da mencionada lei complementar.
A referida Lei Complementar foi de fato criada (Lei Complementar 190/2022), só que a publicação da Lei no Diário Oficial só ocorreu em 05/01/2022, abrindo por isso uma série de questões jurídicas sobre sua vigência (ou não) ainda em 2022, bem como sobre qual alíquota de ICMS aplicar enquanto a nova Lei na vigora. Neste artigo trazemos uma breve retrospectiva de tudo que ocorreu e de como se chegou até o momento atual e trazemos, em seguida, quais os impasses e questionamentos que surgem, com os possíveis caminhos a serem seguidos pelas empresas.
1) Difal ICMS nas Saídas para não Contribuintes: Como era e como começaram as mudanças?
1.1) Como era ANTES da Emenda Constitucional 87/2015?
O texto da Constituição Federal era o seguinte (Art. 155, § 2º, inciso VII)
§ 2º O imposto previsto no inciso II (ICMS) atenderá ao seguinte:VII - em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:
a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;
Como se vê no texto (hoje revogado pela Emenda Constitucional 87/2015) da alínea 'a' do inciso VII, § 2º do art. 155 da Constituição Federal, em operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, era utilizada a alíquota INTERNA (da UF em que a empresa estava sediada) quando o destinatário, de outra UF, não fosse contribuinte do ICMS.
1.2) O que MUDOU com a Emenda Constitucional 87/2015?
A Emenda Constitucional 87/2015 mudou a regra para operações interestaduais destinadas a consumidor final. Antes era aplicada alíquota INTERNA nas operações interestaduais. A Emenda Constitucional 87/2015 trouxe as seguintes mudanças:
1.2.1) nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final (seja ou não, o destinatário, contribuinte do imposto) localizado em outro Estado, será utilizada a alíquota interestadual;
1.2.2) caberá ao Estado em que estiver localizado o destinatário o ICMS correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual (Difal);
1.2.3) a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual (Difal) será atribuída:
a) ao destinatário, quando este (o próprio destinatário) for contribuinte do imposto (chamamos de Difal das Entradas, já que o destinatário, contribuinte do ICMS, recolhe o Difal nas entradas de outros Estados quando destinadas ao uso/consumo/ativo imobilizado);b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto (chamamos de Difal das Saídas, já que o destinatário não é contribuinte do ICMS e cabe ao remetente recolher o Difal para o Estado em que está sediado o destinatário);
2) O que aconteceu depois da edição da Emenda Constitucional 87/2015?
Após a publicação da Emenda Constitucional 87/2015, a cobrança do Difal das Saídas (ICMS devido nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra Unidade da Federação) foi regulamentada por um Convênio ICMS (Convênio 93/2015), que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2016.
A questão foi parar na Justiça justamente pelo fato de a cobrança do Difal das Saídas, tratado na Emenda Constitucional 87/2015, ter se iniciado tão somente com um Convênio ICMS, sem existência de Lei Complementar específica para tratar do tema. De acordo com o STF:
"A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais."
O próprio STF divulgou uma síntese de toda judicialização da questão em sua página, que você pode consultar clicando aqui.
O fato é que os ministros do STF, ao final do julgamento, decidiram que o resultado do julgamento produziria efeitos apenas a partir de 2022, dando oportunidade ao Congresso Nacional para que edite lei complementar sobre a questão. Ou seja, seria necessária a edição de uma Lei Complementar a fim de tratar da cobrança do Difal. A lei veio. O problema está na data em que ela veio.
3) E as empresas do Simples Nacional?
O STF concedeu julgou inconstitucional a cláusula do Convênio ICMS 93/2015 que obrigava o recolhimento do Difal nas Saídas de empresas optantes pelo Simples Nacional. Com isso as normas relativas ao Difal nas Saídas estão judicialmente inaplicáveis às empresas optantes pelo Simples Nacional.
4) Data da Lei Complementar que trata da cobrança do Difal (190/2022) e os Princípios Constitucionais da Anterioridade
Atendendo determinação do STF, o Congresso Nacional exerceu sua atribuição e legislou, ou seja, criou Lei para tratar da cobrança do Difal das Saída, já mencionado anteriormente. É a Lei Complementar 190/2022, publicada no Diário Oficial da União de 05/01/2022, que você pode acessar clicando aqui.
Observe novamente a data da publicação da Lei Complementar 190/2022: 05 de janeiro de 2022.
Agora é necessária uma análise do que dispõe a Constituição Federal em seu artigo 150, inciso III, alíneas 'b' e 'c':
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]III - cobrar tributos: [...]b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
Da análise do texto constitucional acima transcrito é possível observar que nenhum ente federativo (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) podem cobrar tributos:
.: no mesmo exercício financeiro em que foi publicada a lei (alínea 'b' do inciso III do art. 150, chamada aqui de Princípio da Anterioridade de Exercício).
.: antes de decorridos 90 dias da data em que foi publicada a lei que os criou ou aumentou (alínea 'c' do inciso III do art. 150, chamada aqui de Princípio de Anterioridade Nonagesimal)
No que se refere ao prazo de 90 dias (Anterioridade Nonagesimal), a própria Lei Complementar 190/2022, em seu art. 3º deixa claro que ele deve ser observado. Veja o texto do referido artigo:
Art. 3º Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal.
Veja que Lei Complementar 190/2022 deixa claro que, quanto à produção de seus efeitos, deve ser observada a alínea 'c' do inciso III do art. 150 da Constituição, ou seja, seve ser obedecido o prazo de 90 dias da data em que foi publicada.
A mesma Lei Complementar 190/2022 nada afirma sobre a exigência da Anterioridade de Exercício (alínea 'b' do inciso III do mesmo art. 150 da Constituição), que determina que uma Lei só pode entrar em vigor no exercício seguinte ao que foi publicado.
Mas como pode ser verificado analisando a parte final do texto da alínea 'c' do inciso III do art. 150 da Constituição, acima transcrito e destacado em laranja, o próprio texto da alínea 'c' determina que deve ser observado o que dispõe a alínea 'b'. Isso pode levar ao entendimento de que, mesmo a Lei Complementar 190/2022 nada afirmando sobre a vigência no exercício seguinte, ao expressamente fazer referência à alínea 'c' (que determina que a norma entra em vigor 90 dias após sua publicação), indiretamente estaria sendo feita referência também à alínea 'b' (que determina que a norma só entra em vigor no exercício seguinte ao de sua publicação), pois o texto constitucional determina que seja observado o texto da alínea 'b'.
De todo modo ainda pode ser defendida a tese de a as normas do Art. 150, inciso III da Constituição são Princípios Constitucionais e, por sua natureza, mesmo que não houvesse qualquer menção à sua existência (no todo ou em parte) no texto de qualquer lei (inclusive da Lei Complementar 190/2022), a aplicação dos Princípios Constitucionais da Anterioridade (de Exercício e Nonagesimal) não é afastada. Em outras palavras, o legislador não precisaria sequer mencionar a alínea 'c' do inciso III do art. 150 da Constituição Federal (como fez), pois sua aplicabilidade seria automática. Do mesmo modo, o simples fato de deixar de mencionar expressamente a alínea 'b' do inciso III do art. 150 da Constituição não afasta sua aplicação. Por esta forma de enxergar, pode haver o entendimento de que a cobrança do Difal nas operações de saídas só seria devida a partir de 1º de Janeiro de 2023, em obediência ao Princípio da Anterioridade de Exercício, já que a Lei Complementar 190 foi publicada em 2022 e só poderia entrar em vigor em 2023.
5) Já existe Convênio regulamentando a Lei Complementar 190/2022:
No dia 06 de janeiro de 2022 foi publicado no Diário Oficial da União o Convênio ICMS 236, de 27 de dezembro de 2021. Referido Convênio, que certamente já estava pronto aguardando tão somente a publicação da Lei Complementar, apesar de ser datado de 27/12/2021 só foi publicado em 06/01/2022, pois sua publicação só poderia ocorrer de fato após a existência de Lei Complementar.
Não obstante ao fato da existência de Convênio, mantêm-se a dúvida sobre a possibilidade (ou não) de cobrança do ICMS Difal nas operações de saídas ainda em 2022.
6) Afinal, a empresa deve ou não pagar o ICMS Difal nas operações de saída ainda em 2022? Se não pagar o Difal, que alíquota deverá praticar nas Notas Fiscais?
6.1) O que pode ocorrer em relação ao Difal?
Cada Unidade da Federação tem liberdade de legislar sobre o tema. E podem ocorrer as seguintes situações:
a) manifestações das Unidades da Federação no sentido de que a cobrança do ICMS Difal nas saídas seja aplicável ainda em 2022, após o prazo de 90 dias de publicação da Lei; ou
b) pode ser também que alguma Unidade da Federação se manifeste no sentido de que a cobrança do Difal seja apenas em 2023, em obediência ao Princípio Constitucional da Anterioridade de Exercício; ou
c) ainda pode ocorrer de Unidades da Federação simplesmente não se manifestarem.
Qualquer uma das 3 possibilidades deve ser analisada para cada uma das 27 Unidades da Federação do Brasil.
De toda forma, o que pode ser afirmado com certeza até o momento é que, ao menos no prazo de 90 dias contados da publicação da Lei Complementar 190/2022, não haverá cobrança de Difal das Saídas pelas Unidades da Federação.
6.2) Enquanto não recolher o Difal, deve ser utilizada a alíquota interestadual ou a interna?
Esta é outra situação que merece profunda análise. Se o Difal nas operações de saídas não é devido em decorrência da ausência de Lei Complementar, ou em decorrência da não vigência de Lei Complementar existente (como é o caso atual), a empresa teria a obrigação de recolher a alíquota INTERNA nas operações interestaduais, procedendo assim como previa a Constituição Federal antes da Emenda Constitucional 87/2015, em seu Art. 155, § 2º, inciso VII (transcrito no início)?
Esse questionamento se justifica pelo seguinte raciocínio: se a Lei Complementar que regulamenta a cobrança do Difal das Saídas não está em vigor, seria obrigatório o recolhimento do ICMS nos moldes existentes anteriormente?
É mais que recomendável, é essencial, que sua empresa busque se orientar com sua assessoria jurídica tributária, a fim de definir que caminho seguir, tanto no que diz respeito à alíquota aplicável em operações interestaduais destinadas a consumidor final como em relação à data de vigência da Lei Complementar 190/2022.
7) Como ficam as Notas Fiscais
A regra de validação que obrigava incluir nas Notas Fiscais Eletrônicas informações relativas ao Difal nas Saídas está suspensa. Essa informação está no Portal da NFe (clique aqui para consultar).
Com isso, é possível emitir NFEs sem informações de Difal nas saídas.
Já nas regras de alíquotas interestaduais não houve alterações, o que nos leva a deduzir que, ainda que a empresa queira utilizar-se de alíquota interna em operações interestaduais, é possível que não consiga.
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